ARTIGO COMENTADO: O papel da Manometria de Alta Resolução Antes e Após a Cirurgia Antirrefluxo: Consenso de Padova
ARTIGO:
The Role of High-Resolution Manometry Prior to and Following Antireflux Surgery: The Padova Consensus
O papel da Manometria de Alta Resolução Antes e Após a Cirurgia Antirrefluxo: Consenso de Padova
Autores:
Renato Salvador, John E. Pandolfino, Mario Costantini, Prakash Gyawali, Jutta Keller, Sumeet Mittal, Sabine Roman, Edoardo Vincenzo Savarino, Roger Tatum, Salvatore Tolone, Frank Zerbib, Giovanni Capovilla, Anand Jain, Priya Kathpalia, Luca Provenzano, Rena Yadlapati.
Contributions from the HRM and Foregut SurgeryInternational Working group: Shahin Ayazi, Daniel Pohl, Attila Dubecz, Christy Dunst, Albert J Bredenoord, Fernando Herbella, Nicola De Bortoli, Geoff Kohn, Sebastian Schoppmann, Adriana Lazarescu, Lee Swanstrom, Santiago Horgan, Mark Fox, Blair Jobe, David Nocca.
Ann Surg. Published online April 12, 2024. doi:10.1097/SLA.0000000000006297
Comentaristas:
- Dra. Carla Granja Andrade
Professora da Disciplina de Gastroenterologia da Faculdade de Medicina da Universidade Santo Amaro – São Paulo (UNISA)
Mestre em Cirurgia do Aparelho Digestivo pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Membro Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva (CBCD)
Médica Associada à Federação Brasileira de Gastroenterologia (FBG)
Membro da Sociedade Brasileira de Motilidade Digestiva e Neurogastroenterologia (SBMDN)
Membro do Núcleo de Avaliação Funcional do Aparelho Digestivo (NAFAD)
- Dr. Maurício Bravim
Membro Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva (CBCD).
Membro Titular do Núcleo de Avaliação Funcional do Aparelho Digestivo (NAFAD).
Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Motilidade Digestiva e Neurogastroenterologia (SBMDN)
Membro Efetivo da Federação Brasileira de Gastroenterologia (FBG).
Diretor Técnico do CEMAD Neurogastro em Belo Horizonte desde 2002.
Nos últimos 20 anos, a manometria de alta resolução (MAR) tornou-se uma ferramenta diagnóstica para avaliar pacientes com sintomas esofágicos, especialmente disfagia e dor torácica não cardíaca. As alterações motoras são classificadas na MAR através da Classificação de Chicago (CC), atualmente em sua quarta versão. Na prática cirúrgica, a compreensão clara da fisiologia esofágica e da anatomia do esôfago e do estômago é essencial para o resultado ideal da cirurgia antirrefluxo, no entanto, até o momento permanecia indefinido, o papel da MAR antes e após a cirurgia antirrefluxo.
Avaliar pacientes após cirurgia antirrefluxo pode ser um desafio. Embora a endoscopia e o esofagograma possam revelar anormalidades anatômicas, as informações fisiológicas da MAR podem fornecer informações sobre os mecanismos de sintomas recorrentes, com potencial valor na tomada de decisão clínica. O artigo traz o resultado de um consenso elaborado por um grupo de trabalho internacional multidisciplinar de cirurgiões digestivos e gastroenterologistas sobre o papel da MAR pré e pós a cirurgia antirrefluxo com o objetivo de desenvolver uma classificação pós-operatória para interpretar os achados da MAR após fundoplicatura laparoscópica.
O consenso de Padova foi um trabalho internacional multidisciplinar prospectivo conduzido ao longo de 3 anos (julho de 2020 a junho de 2023) que utilizou uma revisão detalhada da literatura e a RAND/University of California, Los Angeles Appropriate Methodology (RAM) para avaliar a concordância entre as recomendações.
O grupo de trabalho de Padova foi composto por 29 membros (14 cirurgiões do aparelho digestivo e 15 gastroenterologistas) de 22 centros da América do Norte e Europa. Os critérios de seleção incluíram liderança no campo da cirurgia digestiva, publicações revisadas por pares e diversidade de geografia e ambiente de prática. O objetivo geral foi gerar declarações de recomendação sobre o papel da MAR na cirurgia antirrefluxo e na cirurgia bariátrica. Este artigo apresenta as afirmações a respeito da cirurgia antirrefluxo.
Os grupos de trabalho da cirurgia antirrefluxo constituíram três subgrupos, cada um avaliando uma das seguintes secções: 1) Elegibilidade para cirurgia antirrefluxo, 2) Papel da MAR antes da cirurgia antirrefluxo, 3) Papel da MAR após a cirurgia antirrefluxo. De acordo com o protocolo RAM, as afirmativas atenderam à definição apropriada quando a votação final teve um escore mediano de 7 ou mais, com 80% ou mais de concordância de que a afirmação era apropriada.
Quanto aos pacientes elegíveis para a cirurgia antirrefluxo o artigo traz um resumo atual e objetivo dos principais aspectos que devem ser levados em consideração para indicar o tratamento cirúrgico da doença do refluxo gastroesofágico (DRGE).
O artigo destaca que de acordo com a literatura disponível, a cirurgia antirrefluxo está indicada para pacientes com sintomas típicos da DRGE (azia e/ou regurgitação) com evidência conclusiva de DRGE na endoscopia e/ou na monitorização ambulatorial do refluxo. Os melhores candidatos para cirurgia antirrefluxo incluem pacientes que respondem a inibidores de bomba de prótons (IBPs) e têm evidência objetiva de refluxo na endoscopia (grau B de Los Angeles ou superior; esôfago de Barrett de segmento longo) e/ou hérnia hiatal e correlação positiva de sintomas com eventos de refluxo na monitorização ambulatorial prolongada. Para pacientes com dor torácica, a exclusão de etiologia cardiovascular deve ser realizada no pré-operatório. É importante ressaltar que a cirurgia antirrefluxo também pode ser oferecida a pacientes que não respondem aos IBP e/ou com sintomas extra-esofágicos no contexto de refluxo anormal definido por exposição ácida esofágica anormal e/ou uma associação sintoma-refluxo positiva para sintomas predominantes de regurgitação com hérnia hiatal clinicamente significativa. Em geral, esses pacientes devem ser informados quanto a possibilidade de persistência dos sintomas após a cirurgia antirrefluxo, possibilidade de disfagia, incapacidade de arrotar, flatulência e outros sintomas gastrointestinais.
A avaliação pré-operatória dos pacientes que estão sendo considerados para cirurgia antirrefluxo deve incluir endoscopia, esofagograma, manometria esofágica de alta resolução e monitorização prolongada do refluxo sem IBP, a menos que evidências objetivas de refluxo estejam presentes na endoscopia. O uso de exames adicionais, como cintilografia para estudo do esvaziamento gástrico e ENDOFLIP, este último ainda não disponível em nosso meio, pode ser útil no pré-operatório no contexto de dispepsia com perda de peso e/ou vômitos ou para avaliar a complacência do esfíncter esofágico inferior, respectivamente. No entanto, é importante salientar que não há evidências que associem os resultados desses testes com os resultados da cirurgia antirrefluxo. Estudos prospectivos são necessários para avaliar o valor desses testes no resultado final da cirurgia antirrefluxo.
Em pacientes que apresentam hérnia hiatal (HH) grande como anormalidade primária, o risco cirúrgico relacionado à idade e comorbidades devem ser cuidadosamente avaliados. A idade e o escore ASA são os principais determinantes da morbidade pós-operatória. O artigo discute os riscos e indicações cirúrgicas em diferentes tipos de hérnias hiatais.
O papel do índice de massa corporal (IMC) elevado no aumento do risco de complicações após a cirurgia antirrefluxo para HH continua a ser debatido. Embora relatos mais antigos sugerissem um maior risco de recorrência e eventos adversos após fundoplicatura para HH em pacientes com obesidade, as evidências atuais sugerem que os procedimentos antirrefluxo podem ser realizados com segurança tanto nos pacientes com sobrepeso (IMC 25-30 kg/m2) quanto nos obesos (IMC > 30 kg/m2), com resultados em curto prazo comparáveis aos de indivíduos não obesos. O resultado a longo prazo do controle do refluxo, no entanto, é pior entre os pacientes obesos e não existem dados conclusivos quanto à escolha do tipo de fundoplicatura, embora a fundoplicatura de Nissen seja mais frequentemente realizada. Além disso, a indicação de fundoplicatura para indivíduos com IMC > 35kg/m2 deve ser cuidadosamente avaliada, uma vez que,procedimentos bariátricos podem ser mais adequados nesses pacientes. De fato, o By-pass gástrico em Y-de-Roux demonstrou controlar efetivamente o refluxo e, portanto, é atualmente recomendado como procedimento de escolha para pacientes obesos com IMC > 35 kg/m2 e DRGE.
Quanto ao papel da Manometria de Alta Resolução antes da cirurgia antirrefluxo o artigo traz as seguintes recomendações:
- A avaliação da motilidade esofágica com a MAR é essencial para excluir distúrbios motores que contraindicam a cirurgia antirrefluxo, especialmente ausência de contratilidade ou acalasia (Escore mediano 9, concordância 89%)
- O achado de Obstrução ao Fluxo da Junção Esôfago Gástrica (OFJEG), conforme definido pelos critérios manométricos atualizados da CC v4.0, deve ser esclarecido antes da realização da cirurgia antirrefluxo (Escore mediano 8, concordância 86%)
- Pacientes com esôfago hipercontrátil, conforme definido pelos critérios da CC 4.0, com evidências conclusivas de DRGE, com ao menos, melhora parcial dos sintomas com medicamentos supressores de ácido, podem ser encaminhados para cirurgia antirrefluxo. (Escore mediano 7, concordância 81%), Ao nosso ver é importante lembrar que o esôfago hipercontrátil pode ser consequência da OFJEG, portanto, em especial em pacientes com disfagia e/ou dor torácica esclarecer melhor esse diagnóstico.
- A cirurgia antirrefluxo deve ser considerada com cautela em pacientes com espasmo esofágico distal (EED), principalmente no contexto de disfagia e/ou dor torácica (Escore mediano 8, concordância 95%).
- A presença de evidência conclusiva de DRGE e ausência de sintomas obstrutivos em paciente com espasmo esofágico distal (EED) pode ser encaminhado para cirurgia antirrefluxo. (Escore mediano 7, concordância81%).
- A função de barreira do Junção Esôfago-Gástrica (JEG) deve ser avaliada pela MAR, usando as métricas da pressão expiratória máxima do EIE, da pressão basal do EEI ou da integral contrátil da JEG (EGJ-CI) e incluindo a presença de hérnia hiatal (separação entre EIE e a Crura Diafragmática (CD) (Escore mediano 8, concordância 85%)
Aproximadamente 5% a 15% dos pacientes a curto ou a longo prazo, apresentam recorrência dos sintomas de refluxo e/ou refluxo ácido patológico após a cirurgia antirrefluxo. Disfagia persistente pós-procedimento tem sido relatada em até 12% a 25% dos pacientes, levando ao prejuízo da qualidade de vida. Quanto ao papel da Manometria de Alta Resolução após a fundoplicatura, o artigo traz as seguintes recomendações
- A MAR tem um papel fundamental para diagnóstico da causa dos sintomas em pacientes com suspeita fundoplicatura malsucedida (refluxo persistentes ou de início recente e/ou disfagia), com exceção de grande hérnia recorrente que necessite de reoperação. (Escore mediano 8; concordância 85%). Pacientes com grandes hernias hiatais recorrentes que necessitam de reoperação, a MAR raramente contribui para a tomada de decisão terapêutica. No entanto, pode ajudar a orientar a fundoplicatura, identificando distúrbios do peristaltismo esofágico, se houver.
- Nenhum achado manométrico é indicação absoluta para a necessidade de reoperação, mas a MAR desempenha um papel na tomada de decisão quando usada em associação com a endoscopia, pHmetria e esofagograma. (Mediana 9, concordância 96%).
- Os achados da MAR após uma fundoplicatura bem-sucedida mostram uma única zona distal de alta pressão refletindo a configuração normal da JEG, com relaxamento deglutitivo apropriado. (Escore mediano 8, concordância89%)
- A fundoplicatura de Nissen (360°) tende a estar associada a maiores pressões de repouso da JEG, maior IRP e maior contratilidade esofágica em relação à fundoplicatura parcial. (Escore mediano 8, concordância 81%).
- Uma combinação de alta pressão intrabolus e alta pressão integrada de relaxamento (IRP) pode ser indicativa de obstrução do fluxo da JEG pós-fundoplicatura (OFPF). (Escore mediano 8, concordância 93%)
- Uma zona única de alta pressão hipertônica com relaxamento deglutitivo anormal ou falho pode indicar fundoplicatura torcida ou muito apertada. (Escore mediano 8, concordância 86%). Espera-se que o valor do IRP “normal” em pacientes pós-cirúrgicos seja maior do que os pacientes não operados, no entanto, uma alta pressão de repouso do novo EIE com relaxamento inadequado (OFPF) pode ser observada em pacientes com fundoplicatura torcida ou fundoplicatura e/ou hiatoplastia apertadas.
- Os achados da MAR correlacionados com a fundoplicatura deslizada que envolve o estomago proximal, incluem dupla zona de alta pressão: onde o segmento superior, que corresponde ao EIE mostra relaxamento deglutitivo normal, enquanto o segmento distal, associação entre crura diafragmática e a fundoplicatura deslizada, é geralmente um segmento de pressão uniforme que não apresenta relaxamento deglutitivo (Escore mediano 7, concordância 80%)
- Os achados da MAR correlacionados com uma fundoplicatura intratorácica incluem uma dupla zona de alta pressão: onde o segmento inferior (crura diafragmática) mostra o padrão respiratório esperado como em pacientes com hérnia não operada, enquanto o superior pode ser associado à fundoplicatura herniada pode ou não mostrar relaxamento deglutitivo.(Escore mediano 7, concordância 81%)
- Em pacientes com disfagia de início recente e achados endoscópicos normais, o esofagograma temporizado e o ENDOFLIP podem ajudar a esclarecer a etiologia dos sintomas, em particular se os achados manométricos forem inconclusivos.(Escore mediano 8, concordância 93%)
Em resumo, quanto a morfologia da JEG pós cirurgia antirrefluxo pela Classificação de Padova, a separação da zona de alta pressão >1cm abaixo da crura diafragmática indica uma fundoplicatura deslizada que envolve o estomago proximal. Se a zona de alta pressão >1cm estiver acima da crura diafragmática, avalia-se a pressão basal/de repouso do novo EIE: a hipotonia indica uma fundoplicatura desfeita com HH, enquanto um novo EIE normotenso indica uma fundoplicatura íntegra. A ausência de separação EIE-CD sugere a anatomia esperada pós cirurgia antirrefluxo;
O racional proposto pela Classificação de Padova para MAR é avaliar se a fisiologia após cirurgia antirrefluxo do novo EIE e o vigor do corpo esofágico é anormal ou não. Começar pela avaliação da pressão basal do novo EIE em repouso e pela morfologia da JEG. O EIE hipotensivo indica uma cirurgia antirrefluxo desfeita ou ineficaz e o monitoramento do refluxo deve ser indicado para avaliar a DRGE recorrente, se clinicamente indicado. Por outro lado, um EIE hipertensivo indica uma Obstrução ao Fluxo da Junção Esofagogástrica pós fundoplicatura (OFPF), Da mesma forma, um EIE normotenso com pressão de relaxamento do EEI elevada (isto é, IRP elevada) também pode indicar OFPF em pacientes com disfagia. A presença de pressurização intrabolus aumenta a possibilidade de diagnóstico de OFPF. Se a pressão basal e a IRP estiverem normais, o próximo passo é a avaliação de peristaltismo esofágico. Peristaltismo falho em 100% das deglutições indica ausência de contratilidade. A MAR pré-operatória pode ajudar a discernir se a contratilidade ausente era pré-existente ou se é um achado novo. Pseudoacalasia relacionada à cirurgia antirrefluxo ou uma acalasia não diagnosticada são fontes potenciais de uma contratilidade ausente. A presença de pelo menos alguma contratilidade indica achados esperados após a fundoplicatura. Nesse cenário, o monitoramento do refluxo pode ser considerado para avaliar DRGE recorrente, se clinicamente indicada.
Apesar de reconhecer a validade dos estudos publicados até o momento, não houve consenso quanto a validação dos testes provocativos antes e depois da cirurgia antirrefluxo. As principais limitações desse consenso foram: a) a concordância foi baseada na literatura existente e pode refletir as falhas dos estudos avaliados, b) os níveis limitados de evidência, já que a maioria dos dados é derivada de dados observacionais, em oposição a ensaios clínicos randomizados ou metanálise, muitas vezes com amostras pequenas e experiências de um único centro, e, c) a falta de dados sobre os desfechos para confirmar as recomendações.
A iniciativa da classificação de Padova resume o estado de nosso conhecimento sobre o uso da MAR antes e após a cirurgia antirrefluxo, avaliada por um grupo de trabalho internacional multidisciplinar de cirurgiões e gastroenterologistas reunidos com o objetivo de desenvolver um primeiro consenso que com certeza deve evoluir em versões posteriores semelhante a própria Classificação de Chicago.