Qual o futuro da remuneração médica?
fonte: MedScape
Os novos modelos de remuneração médica, assim como o impacto deles na qualidade do atendimento e nos resultados alcançados, estão entre os pontos mais problemáticos e relevantes da atualidade para os profissionais vinculados a convênios médicos e seguradoras. “O sistema de saúde enfrenta não apenas uma crise relacionada a custos, mas principalmente uma crise relacionada ao valor. Essa nova disrupção traz consigo uma agenda que tem sido discutida desde 2006 e que tem nos levado a repensar a nossa prática”, observou o cardiologista Dr. João Fernando Monteiro Ferreira na abertura de uma sessão dedicada ao tema no 43º Congresso da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (SOCESP).
Os atuais modelos de remuneração baseados em valor prevalecem no ecossistema da saúde e são criticados por não estarem alinhados com o valor entregue aos pacientes. “As fontes pagadoras precisam adotar modelos de remuneração baseados em valor, em vez de se concentrar apenas nos custos envolvidos nos tratamentos. ‘Valor’, nesse contexto, é quando conseguimos otimizar os resultados para os pacientes, levando em conta os custos financeiros envolvidos”, explicou o Dr. João Fernando, que é ex-presidente da SOCESP. Para ele, o foco atual dos médicos deve ser em obter os melhores desfechos e reduzir os gastos, levando em consideração a perspectiva do paciente, a do médico e os custos.
Dentre as formas de remuneração por valor praticadas no mercado atualmente há diversas modalidades, como os pagamentos por desfecho, por pacote e por vida. De acordo com o médico, cada uma dessas opções é mais adequada em cenários específicos, mas isso ainda precisa ser mensurado e avaliado. Outro modelo que vem se disseminando no país é a remuneração por episódio de cuidado, em que todos os profissionais envolvidos na assistência a um paciente compartilham o risco financeiro do atendimento — o que os levaria a buscar o melhor custo-benefício possível. Mais um formato é o de responsabilidade compartilhada, no qual um prestador ou uma lista de prestadores é responsável por todo o cuidado do paciente. “No entanto, o momento é de muitas críticas à forma como os modelos de pagamento têm sido implementados, especialmente em relação à qualidade da assistência e aos indicadores de saúde”, destacou o Dr. João Fernando.
Um dos pontos enfatizados pelos debatedores da sessão foi a necessidade de colaboração e alinhamento de interesses para garantir um atendimento com bons níveis de qualidade e custos adequados. “Isso inclui prestadores de serviços, fontes pagadoras, indústrias de insumos e farmacêuticas, agências reguladoras e pacientes”, disse ao Medscape o Dr. João Fernando.
Contudo, sem dados para informar decisões, pouco se pode avançar na escolha e na implementação de qualquer modelo. “A tecnologia desempenha um papel crucial nessa transformação, permitindo a coleta de dados sobre os desfechos dos pacientes e a mensuração dos resultados. O uso de ferramentas digitais e sistemas de informações é essencial para o monitoramento contínuo dos resultados e o aprimoramento da prática médica”, disse o palestrante João Gabriel Pagliuso, médico da economia da saúde no Hospital Israelita Albert Einstein. Em sua apresentação, ele compartilhou o link do “Dossiê de valor 2023” do hospital, [1] publicação que discute o papel de indicadores confiáveis e do acompanhamento institucional de cada etapa do relacionamento entre paciente e corpo clínico. O documento deve servir de inspiração para que a divulgação de indicadores de valor se torne comum para os profissionais de saúde.
O Dr. Renato Azevedo, que foi vice-presidente da Socesp no auge da pandemia, disse em sua apresentação sobre o tema que o atual sistema de financiamento público de saúde é insustentável e que é preciso buscar alternativas. O médico citou como parâmetro um documento da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que traz orientações sobre a implementação de um novo modelo de remuneração baseado em valor.
“Precisamos nos familiarizar com esse conceito que pode trazer benefícios significativos para a comunidade”, disse o médico, que abordou também os desafios enfrentados por planos de saúde e seguradoras, ressaltando a importância de uma gestão financeira adequada. Ele recomendou a leitura do “Guia para implementação de modelos de remuneração baseados em valor”, da ANS, publicado em 2019. [2]
O debate teve também a participação do diretor da ANS, o Dr. Alexandre Fioranelli, que falou sobre os desafios dos sistemas de saúde relacionados ao aumento dos custos e à evolução tecnológica. “Em 2030, estima-se que o número de idosos no Brasil será maior do que o de jovens. Isso resultará em uma maior demanda por cuidados de saúde”, disse o Dr. Alexandre. Segundo ele, as operadoras de saúde enfrentam alta sinistralidade — o que as preocupa cada vez mais — e existe um desconhecimento do perfil populacional por parte dessas empresas.
“Nós temos debatido com as operadoras sobre a necessidade de gerenciarem não apenas o acesso ao atendimento, mas também o cuidado com os pacientes. Existe uma falta de coordenação em todo o circuito iniciado com a entrada do paciente nos serviços de assistência, e há pouco investimento em prevenção”, disse o Dr. Alexandre. O gestor revelou ainda que uma pesquisa a ser publicada em breve pela ANS mostra que ao menos 33% dos municípios brasileiros não dispõem de nenhum tipo de rede de saúde local.
Com relação ao surgimento de novas tecnologias, o Dr. Alexandre destacou as mudanças na incorporação dessas ferramentas à rede suplementar. “Há dois anos, o rol de procedimentos e eventos em saúde era revisado a cada dois anos. Agora, fazemos isso de modo contínuo. “Além das evidências científicas, a avaliação considera os custos das novas tecnologias para entender se são coerentes ou não com os benefícios adicionais”, detalhou, lembrando que as reuniões da ANS podem ser acompanhas pelo YouTube e que qualquer pessoa pode pedir a incorporação de uma nova tecnologia. “Queremos que os profissionais e as sociedades médicas cada vez mais participem ativamente desse processo.”
Ponto de vista dos médicos
O presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Dr. César Eduardo Fernandes, apresentou a perspectiva dos médicos sobre os principais problemas enfrentados na remuneração do trabalho. Em um breve panorama, explicou que a forma de pagamento dos profissionais depende do vínculo formal mantido com as operadoras, seja no sistema privado, em que o paciente paga diretamente, ou como médico credenciado ou preferenciado por um plano de saúde. Há também médicos cooperados, vinculados a hospitais, clínicas e laboratórios, além dos que atuam como funcionários públicos concursados.
De acordo com o Dr. César, é fundamental saber se a categoria está satisfeita com os seus honorários e se os considera justos. “Temos tido reajustes periódicos necessários ao longo do tempo? Como médicos, nosso trabalho impacta fortemente a saúde das pessoas, e a baixa remuneração não é definida por nós, mas sim pelos outros. Não há valores máximos preconizados. Além disso, há uma falta de diferenciação na remuneração de acordo com a qualificação profissional. Jovens médicos ou aqueles com alta experiência e formação não são valorizados como deveriam, mesmo com previsão normativa para isso. Na prática privada [com operadoras de saúde], a fonte pagadora muitas vezes decide arbitrariamente os repasses aos médicos, algumas vezes chegando a apenas 30% do valor a ser pago”, disse o presidente da AMB.
Quanto aos modelos de remuneração propostos, não faltam pontos problemáticos que podem prejudicar os médicos e precisam ser discutidos amplamente. “Dependendo do modelo, existe o risco de o negócio ser compartilhado com os médicos, por isso o pagamento pode se tornar variável. Isso pode resultar em situações desfavoráveis que não estão diretamente relacionadas ao trabalho médico, e há a possibilidade de não remuneração do profissional pela realização de procedimentos, mesmo que haja previsão normativa para isso”, observou o Dr. César.
O especialista mencionou aspectos mais problemáticos, como a remuneração por tempo dedicado ao paciente, que não leva em conta a complexidade do trabalho realizado e a formação do profissional. “No sistema de saúde suplementar, a qualidade das consultas e a autonomia do médico podem ser prejudicadas por metas de quantidade de atendimentos e por protocolos que não levam em consideração as evidências científicas. Já no sistema de saúde pública, não houve avanço na proposta de carreira para médicos, algo defendido pelo movimento associativo da classe médica brasileira. É essencial refletir sobre essas questões problemáticas e buscar soluções que valorizem adequadamente o trabalho médico e garantam uma remuneração justa e condizente com a complexidade e a importância da nossa profissão”, disse o Dr. César em entrevista ao Medscape.
Sobre a atuação da ANS em favor dessas reivindicações, o Dr. César disse que a remuneração médica não é uma questão nova e vem sendo tratada pela agência há cerca de sete anos. “A regulação e a fiscalização das operadoras por parte da ANS têm sido insuficientes, mas recentemente tem havido uma maior preocupação nesse sentido”, disse ele. Para o Dr. César, é essencial que a categoria médica participe desse debate o quanto antes para fortalecer a defesa dos seus interesses.